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O arame farpado dos assédios às meninas trabalhadoras

29 de Abril de 2024 às 10:48

Companheiras e companheiros do SUS!

Ontem, dia 29/04 foi o dia mundial dedicado à saúde e segurança no trabalho.

Por isso, publicamos um texto dedicado às meninas trabalhadoras e os assédios porque passam no mundo do trabalho de autoria da Assistente Social Estela Scândola.
Estela é doutora em Serviço Social, feminista, pesquisadora e militante dos Direitos Humanos.

Na adolescência e juventude das camadas mais pobres da sociedade, o trabalho formal é a perspectiva de fonte de renda e entrada em um mundo que pode que responder a uma expectativa de sociabilidade sadia.

Enquanto a classe média e os ricos vão estudar o dia todo e fazer cursos complementares, as pobres vão ao mundo do trabalho. E há uma defesa terrível que é para cuidar para não caírem no crime, nas drogas e na prostituição… um discurso bem torcido. E a maioria, esmagadora maioria passa a sonhar com isso e repetir o discurso…


As meninas empobrecidas, praticamente todas elas vêm de experiências de trabalhos precários, informais e super explorados, incluindo aí o trabalho doméstico.


A vinculação a um posto de trabalho formal, ao redor dos 15-16 anos, como aprendiz, adolescente trabalhadora ou estagiária, carrega expectativas da própria menina, de toda a sua família, da comunidade no seu entorno e da sociedade.

A representação social de que essa menina, por enquanto, não irá se perder em uma gravidez precoce, usar drogas ilegais ou mesmo se envolver com más companhias, se complementa com a ideia de que ela estará encaminhada na vida, ganhando seu próprio dinheiro e ajudando sua família.

Atualmente há uma tendência de descartar-se o casamento e focar-se na renda como fim último das mulheres-meninas.

Assim, o trabalho como nossa maior identidade social passa a ser reforçado pela experiência como aquele que não se sabe o que vai fazer, transformando-se na razão principal que é acessar a bens de consumo que ainda não se tinha ou era regulado.

As filhas das classes mais miseráveis dificilmente chegam aos postos de trabalho com vínculos formais.

Pelo contrário, ficam nas franjas da informalidade, especialmente no trabalho das ilegalidades e das barbáries.

A expectativa de chegar a posto de trabalho em serviço público, mesmo que terceirizado, pode significar uma forma de sucesso pessoal e de ter conseguido vencer etapas muito desafiadoras.

Todas as capacitações e preparo para o trabalho dignificam o mérito pessoal e reafirmam que o sucesso dependerá da forma como cada pessoa vai lidar com as dificuldades.


E é no ambiente de serviço, sobretudo nas relações pessoais e coletivas, que as adolescentes que construíram imaginário de trabalho como aprendizagem e prazer vão deparar-se com outras realidades.


Dentre os sofrimentos no trabalho estão as vivências de Desigualdades, Discriminações, Assédio Moral e Assédio Sexual, ou DesDisAMAS, como passamos a denominar. E isso tudo ocorre junto e misturado… tudim!

Caracterizam-se por relações desiguais e violentas de poder entre pessoas e grupos por machismo, racismo, heterossexismo, cultura de mando autoritário ou mesmo entre profissões consideradas mais e menos importantes. E ainda tem a consciência de classe, aquela que alguns pensam que estão em uma classe mais abastada e pode mandar nos demais… Pobres que pensam que são classe média e classe média que pensa que é burguesia…

Fato é que diante das ameaças – veladas ou ditas – como “vou devolver você para o RH”, “vou devolver você para a ‘instituição formadora/terceirizadora’”, as adolescentes passam a se adequar física e mentalmente ao mando sobre os corpos e mentes.

Preparam-se para a disciplina tolhedora de identidades e formas de expressão. Sim, o mundo do trabalho assepsia a diversidade e a coloca em mobiliários, cuja nomenclatura mais utilizada atualmente é baia.


Segundo a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o termo “violência e assédio” no mundo do trabalho refere-se a um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis ou de suas ameaças, uma única vez ou repetidamente, que visam, causam ou podem produzir dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o assédio com base no gênero.

É pela interseccionalidade de desigualdades e discriminações que se forma um caldo de violências de todas as espécies e podemos afirmar que a maioria das vítimas é de mulheres. E quando uma mulher vivencia, presencia ou fica sabendo de uma realidade, sofre com as demais.


O enfrentamento ao assédio moral e assédio sexual nasceu, exatamente, pela luta das mulheres que se organizaram e passaram a fazer as denúncias coletivamente.

Muitas vezes as denúncias ocorreram nos sindicatos. Outras tiveram que ocorrer fora deles, até porque o sindicato não lhes dava ouvido, ou seja, nem sempre essa organização se envolve no enfrentamento às DesDisAMAS.


Essa violência causa danos à saúde mental, emocional e física, como dores generalizadas, palpitações, distúrbios digestivos, alteração do sono, irritabilidade, crises de choro, abandono das relações pessoais, isolamento, síndrome do pânico, problemas familiares, estresse, depressão, esgotamento físico e mental, perda do significado do trabalho.

Tudo isso pode resultar ainda em automutilação, ideação suicida e/ou suicídio.


Sim, a maioria das mulheres considera que atitudes criminosas de DisAMAS é um binômio violador X violada.

Mas não o é. Há uma permissão social para que as manifestações que aparentemente são individuais ocorram.

Por isso, quando a maioria das organizações não ouve as mulheres, elas criam coletivas de apoio e buscam Comissões de Ética, Ouvidorias, Ministério Público do Trabalho.

Ligam também para o Disque 180 ou mesmo o Disque 100.

Ou procuram assessoria jurídica e apoio psicossocial para dar o passo de denunciar e buscar ajuda.

Mas, todas sabemos que não é fácil.


Nessas horas, muitas procuram a amiga mais próxima para contar suas dores e tristezas, mas nem sempre recebem o apoio desejado. Até porque nem sempre sabemos como apoiar.

Por isso, precisamos falar, falar, falar do assunto.

Sim, criar um círculo de confiança e afeto que nos ouça com cuidado, não nos julgue e nos compreenda o quão difícil é encontrar caminhos. E, às vezes, caminhar juntas.


A violência no ambiente de trabalho traz prejuízo também para toda a sociedade.

Reduz a produtividade da empresa ou órgão público, causa perdas financeiras para as pessoas e constrói uma representação social como um lugar danoso.

Envolve o coletivo em escândalos e desmoralizações e ainda causa custos com tratamentos médicos, despesas com benefícios sociais, pessoas afastadas do trabalho e sensação de impunidade diante da violência.

Enfim, todo mundo perde com as discriminações, o assédio moral e assédio sexual, pois ferem cada pessoa e a sociedade adoece coletivamente.

Pouco a pouco, a banalização do sofrimento vai atingindo todas as pessoas.

No entanto, quando as DesDisAMAS ocorrem com adolescentes e jovens meninas, vários fatores dificultam sua proteção, muito embora pudéssemos nos valer das leis trabalhistas, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição e das Resoluções e Protocolos da ONU.

Sim, há muitas ”cercas de arame farpado” que impõem sofrimento às adolescentes e às jovens meninas:

— fuga do destino da obediência servil

— desejo de serem aceitas no mundo do trabalho

— sindicatos corporativos que não enxergam seus jovens e adolescentes na força de trabalho

— ausência de programas de saúde dos trabalhadores e trabalhadoras com universalidade

— baixas perspectivas do que fará ao terminar o estágio ou ao completar 18 anos

— pressão social e familiar para ser meninas ‘bem empregadas’

— a espada afiada da necessidade do auto-sustento

— órgãos de garantia de direitos da infância que já não lhes acompanham mais, pois já estão “cuidando de suas vidas”

— movimentos e organismos de defesa dos direitos das mulheres as veem como adolescentes

É no enfrentamento cotidiano junto com as meninas que aprendemos e ensinamos como atuar na garantia de direitos.


É da dignidade humana que se aprende vivenciando processos educativos libertadores com consciência de classe, gênero, etnorracialidade e geração que estamos falando.

É desromantizar o trabalho na adolescência e juventude e das possibilidades de ele ser também fonte de contentamento.

Parte dessa garantia está na Constituição. A outra parte está na vida da gente que não se pode negociar.

Nas datas de concentração dos nossos ativismos que os movimentos estão mobilizados estarão garantidas as pautas do trabalho e das discriminações e assédios?

O que os operadores de direitos, grupos, movimentos, empresas e Estado brasileiro pautaram para o enfrentamento da barbárie que assola nossas meninas?

Isso só vai mudar com elas…

Esse caminho de libertação das mulheres não tem volta. É possível fazer do trabalho uma forma de a gente como ser social que sonha, luta e se organiza. Ainda que seja difícil, as cercas sejam de arame farpado, é possível gargalhar do nada… só pelo prazer de termos lutado juntas.


PS: Todos os nomes são fictícios, as idades são da época em que eu e Axana registramos depoimentos, no estágio de Serviço Social na Escola de Saúde Pública.

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